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365 Carnaval, identidade, conceito e coisas que relativizam o tempo

Meus processos são lentos, por isso não solto resenhas tão rápido quanto deveria. Outro motivo para os constantes atrasos é a dificuldade de criar algo sobre a obra de outra pessoa. Não pelo lado da aceitação do público ou do artista, a dificuldade é não ser um Dr. Frankenstein na hora de escrever e acabar criando um monstro produzido por recortes que não se encaixam — ou que deveriam não se encaixar. E somados ao processo árduo e insalubre de escrever sob demanda, vêm os sentimentos de injustiça e/ou falta de discernimento sobre a arte em si. Analisar e mostrar pontos relevantes numa postura minimamente crítica não é para qualquer um. E isso não é relativo.

Porém, o seio crítico desse espaço de ideias livres diz considerar que, quando as palavras obra, como acúmulo de produção artística, e tempo forem empenhadas numa frase, tudo é relativo. É uma questão de lógica. Numa noção própria de espaço-tempo, as ondas da criação, concepção e reconhecimento — por parte do público, principalmente — reagem de maneiras diferentes à faixa de continuidade estabelecida pelo(s) autor(es) da determinada obra. Tudo tem um modo desproporcional de acontecer. O que vem bem a calhar com o sentimento remanescente depois de ter ouvido o 365 Carnaval, álbum do grupo carioca Carta na Manga, lançado ano passado.

Na resenha do livro O vermelho e o negro, do Stendhal, o tempo, relativo como ele só, já havia sido explorado com alguma profundidade. Os capítulos se interpolam com as crises de consciência de Julien Sorel e sua maneira peculiar de enxergar a realidade. Quando no mosteiro, os eventos se desenrolam num ritmo lento, proporcional a sua falta de vontade em estar ali e ser, efetivamente, um padre. Quando há uma aproximação, mesmo que tênue, da sua realidade em algo que tangencie a vida militar, o ritmo acelera vertiginosamente e a sucessão dos acontecimentos — mesmo os mais comuns — é de tirar o fôlego.

No livro toda essa percepção do tempo é corroborada por um processo de imersão que dura semanas ou, até mesmo, meses — ou anos, quem sabe. É um processo único e que não tornará a ser repetido tão cedo, deixando impressões mais duradouras e absolutas demais para algo considerado tão relativo por aqui. Porém, se levada para a produção de um disco, a relação entre obra e tempo torna-se muito mais confusa e, naturalmente, se faz necessária a criação de um marco. A noção de realidade deve ser fixada numa posição incapaz de ser alterada e guiada pelos veículos que conversam sobre a obra, convertendo os diversos momentos de uma realização da imensidão de um disco em apenas um ponto comum no tempo-espaço: o lançamento.

Escrever sobre o 365 Carnaval mais de um ano após seu lançamento permite assegurar a todos que a obra, em sua totalidade, foi revisitada por inúmeras vezes, repensada e discutida até o momento em que me justapor ao Carta na Manga foi possível, a ponto de sentir as dificuldades que culminam no tempo e toda sua influência no disco.

Todo o ideal de um disco, para efeitos mercadológicos basicamente, circula pela data de lançamento. É quando todo o hype é criado, a imprensa solta matérias e resenhas, o artista faz entrevistas, os sons aparecem nas playlists do Spotify e essa mecânica industrial toda toma forma quase que espontaneamente. Por mais que o artista foque, em entrevistas, na sua trajetória até o momento de conceber o disco, aquele momento do lançamento fica marcado como a realidade da obra. E, mesmo que o disco perdure no tempo, quase todo o material de consulta e, consequentemente, as opiniões que circulam, convergem para o momento em que a obra foi lançada. Processos “rápidos”, como a audição de um disco, costumam ter dessas coisas.

Em primeiro plano é perceptível que, nesse processo de anos montando e remontando músicas como peças isoladas de um projeto maior, a produção se alterna e caminha por lugares que bifurcam para novas experimentações e sonoridades, mesmo que estejam dentro de um ideal inquebrantável. Diferente dos discos montados em dois, três meses e que são lançados com muita naturalidade atualmente — sendo recortes específicos da realidade imediata e, por isso, mais ajustáveis a uma visão unilateral de realidade —, discos produzidos como parte de um processo maior e mais longo tendem a exercer funções diferentes dentro da concepção adotada do que é obra.

A demora, a construção, a desconstrução do conceito e todas as definições que perpassam uma produção de anos para um produto final que seja durável (sob qualquer aspecto), são uma confirmação muito maior da durabilidade do ideal que do alcance do mesmo — seja ele qual for. É importante e necessário entender que um trabalho consistente não garante a longevidade da obra e que um trabalho longevo não é garantia de uma identidade para o grupo em questão. Desta forma, as descontinuidades provocadas pelo tempo de produção não interferem na sua qualidade e, principalmente, na transmissão direta de um ideal comum; bem como os poucos views e likes são incapazes de refletir a originalidade, qualidade e alcance da obra.

A insistência no uso de ritmos latinos nos samples e sons orgânicos característicos, por exemplo, tende a expressar bem a questão de um ideal que perdure no tempo e que pode ser visualizado e confirmado numa obra. Não se trata apenas de recortes ou de uma escolha rítmica qualquer. Tudo faz parte de uma construção idealizada por uma realidade que se aproxime de um ideal onde, liricamente inclusive, o que foi montado se aproxime de impressões que remetam à vivência brasileira ou, de forma mais ampla e reconhecendo no tempo histórico uma realidade em comum, a uma vivência latino-americana.

Porém, se nem tudo são flores por aqui, não significa que as flores não existam. Explorar a herança cultural brasileira e pontas da latinidade não consiste apenas em retratar uma dura realidade e transformar palavras em denúncias sobre o caos social. Isso seria ignorar o grande berço criativo do qual fazemos parte, excluindo a parte bonita da formação cultural oriunda de expressões populares. O conceito de beleza pode parecer meramente estético, mas obras como o 365 Carnaval ajudam a renovar a necessidade de empregar um sentido funcional para a coisa toda. Para isso existe o ludismo habitual ao explorar conceitos um tanto quanto abstratos, o que nos leva às subversões do conceito de beleza — mais belos que os conceitos padrão, diga-se de passagem.

Talvez, o ideal de beleza tenha sido a primeira forma — inconsciente — de ludibriar o ser humano e fazê-lo desviar a atenção da realidade imediata — como as drogas o fazem de maneira mais agressiva, mas não tão eficiente —, modificando de forma natural o plano sensorial, investido numa maior sensibilidade a um espectro confortável aos diversos sentidos que convergem para as sensações de deleite e/ou prazer. O prazer transforma a relação do homem com o tempo. Mesmo reduzido a um plano estético, o ideal de beleza é essencial à vida, camaradas. A beleza torna tudo aprazível e longevo.

Explorar memórias e situações que circundem um ideal suburbano e boêmio de beleza é, além de um recurso perspicaz para incluir o “rap de mensagem” no repertório, uma forma de recriar o que a arte é capaz de fazer para transformar a realidade de um universo. É o que a música popular faz nessa via de mão-dupla entre o conceito de beleza e a própria música. Tornar a beleza acessível através da música é aferir à obra contornos de algo espontâneo, que só a arte seria capaz de fazer. Dentro de uma realidade lúgubre, que desfavorece a presença de sensações que se assemelhem ao prazer e ao conforto, colocar ouvidos para perceberem que o resgate da latinidade é uma forma de despertar as belezas e os prazeres da vida tanto quanto protestar — dentro de um ritmo tão erroneamente virtuoso quanto o rap — é subverter a fórmula.

Ampliar padrões e apresentar novas alternativas é, sem deixar de lado o viés mercadológico, essencial para quem deseja manter-se vivo nesse jogo maluco, ainda pouco profissional e ególatra que é o rap no Brasil. O reconhecimento, tanto do disco quanto do grupo, ainda não é o merecido, se comparado a números de visualizações em plataformas de streaming e redes sociais diversas. Olhando por outro lado, o público formado é sólido e identificado com a obra, o que estimula uma perspectiva de sucesso mais aprazível de ser calculada. Talvez essa relação entre seguidores e consumidores ainda não tenha atingido o ideal do grupo. É inegável que leva tempo para que isso aconteça num trabalho que mexa em conceitos ainda pouco aproveitados no meio em que circula. Como dito anteriormente – e é motivo desse texto inteiro -, tudo depende do tempo, e o tempo é relativo.

365 Carnaval é um disco que tem suas diferenças de continuidade devido ao longo tempo entre produções, porém é uma obra conceitual, muito bem produzida e bonita, prazerosa de ser explorada por ouvidos dispostos e atentos. Mais do que isso, o tempo confirma que o disco exerce, sem sombra de dúvida, caráter identitário sobre o grupo e pré-define o que está para ser produzido por aí em toda sua latinidade e efervescência. Fica a pergunta: qual a próxima Carta na Manga?

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