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“Capitães da areia” e a fé – Uma resenha de “Esú”

O disco de estreia de Baco Exu do Blues, Esú, é maior que o hype. Não é pelo nível técnico da produção em geral ou por suprir — leia-se superar — as expectativas criadas após um ano de Sulicídio e a proclamação do “ano lírico” em 2017 (parece que foi ontem, né?). Na verdade, um álbum consistente o bastante para fazer jus a todo o barulho que o próprio Baco gerou é exatamente o que todos esperavam. Alguns opinam de forma mais afoita. Outros são mais críticos, talvez céticos. Normal, é do jogo. E, sendo sincero, para qualquer pessoa que trabalha com arte isso não deveria ser incômodo algum. O que coloca Esú acima do hype está no processo de construção de pensamento e as formas que o álbum toma, dependendo sempre do ouvido alheio. Resumindo: Baco fez arte.

(Ainda pretendo escrever uma resenha apenas musical/técnica nesse espaço e manter uma regularidade argumentativa, mas não será nesse texto. Nem no próximo. Quem sabe no futuro? Enfim, sigamos.)

Sou um inveterado leitor de Jorge Amado desde a primeira experiência de leitura que tive, no alto dos meus quinze anos, com — adivinhem — Capitães da areia. À época eu não me apregoava muito à moral e a complexidade de uma obra. Talvez pela falta de maturidade, minhas memórias remetem a percepções sensoriais das passagens. Ainda reconstituo cenas inteiras do livro com base nos sentidos que restaram e a memória, cada vez mais vaga, da leitura. Ouvir Esú me fez reconstituir as cenas e trazer à tona todos esses sentidos e sentimentos que encontrei em Capitães da areia: o cheiro da cidade, as ruas, as pessoas, a sujeira, a pureza de espírito e a disgraça. Por não conseguir dissociar o álbum do livro, tomo a liberdade de deixar um pouco de lado a formalidade do release oficial — que resume e explicita a questão de o homem encontrar o deus em si e os conflitos eternos na busca de autoconhecimento, harmonia e equilíbrio entre os dois lados da moeda —, toda atmosfera cultural e representatividade da obra, e divago sobre outras impressões, talvez mais subjetivas, que o disco me despertou.

Ler Jorge Amado é um exercício de contínuo. É uma fé que caminha para além do religioso ou do intangível, como se o indivíduo pudesse operar milagres por si só ou reescrever a história de uma hora para outra. A fé de Jorge Amado está no processo, nas pequenas coisas que compõem o humano. Ela consiste em tornar um narrador onisciente parcial, rompendo algumas barreiras literárias à época da publicação (1937) e, principalmente (!!!), sociais. Pedro Bala e seus comparsas não são apresentados com a superficialidade que seus delitos e condição de vida ocupam no imaginário popular, um tanto sectário. Existe alguém que os conhece profundamente e os defende desde o primeiro parágrafo do livro. A realidade impressa por Jorge Amado aos Capitães da areia — e a própria Salvador — não mudou muita coisa após 80 anos.

Em 2017, a Salvador de Diogo Moncorvo continua estacionada na mesma onda de indiferença, violência e caos social que forma Pedros, Pirulitos e Professores todos os dias. O comportamento não muda, porém parece ser possível reagir às ondas de caos apenas de forma individual. Grupos grandes como os Capitães da areia não precisam existir para oferecer real ameaça; tampouco as maneiras de resistência contraculturais necessitam rotular características em corpos distintos ou generalizar uma condição para se fazerem inteligíveis. Tomar para si, com sensibilidade e astúcia suficientes, as dores e necessidades da existência e representá-las de forma una, passa a ser um exercício particular de juízo e justaposição. Um exercício divino, podemos considerar. E o divino causa medo. Torna-se mais difícil — e arriscado — ter fé no próximo. Guardamos nossa fé para uso próprio ou para depositar em pessoas que consideramos mais elevadas que nós mesmos.

Essa fé individual, mantida em stand-by, permite que sejam aproximadas novas maneiras de sentir o mundo, e todas elas têm relação com o sentimento de impotência e suas ramificações. A sensação divina de ter o poder de projetar e, por ventura, realizar mudanças no meio, vai de encontro com o consciente coletivo que reduz a importância da história que o indivíduo escreve continuamente, deixando tudo num lugar comum, pensado por um senso comum e não usufruído de maneira devida, física e espiritualmente falando, pelos seus iguais. É, em parte, o que jornais fazem com as notícias que são veiculadas todos os dias, como as publicadas no começo de Capitães da areia, tratando Pedro Bala e seu bonde com a indiferença costumeira da “imparcialidade jornalística”. Ou o que o público fez com Sulicídio, colocando a música como sendo apenas um grito por espaço comercial — nisso estão incluídos quem apoiou a música também. O entusiasmo excessivo é tão carente de profundidade quanto a indiferença —, quando existe uma motivação (não ambição) um tanto maior e mais complexa por trás da ação de soltar a música.

Só quem já passou pelo processo de ter seu trabalho analisado fria e superficialmente, para depois passar por um processo de ressignificação para que, finalmente, as pessoas comecem — quem sabe — a aceitar a sua ideia, sabe o quão desestimulante é encarar a repercussão do próprio trabalho. A falta de profundidade e de identificação sobre tudo que é difundido para um grupo de pessoas, no caso o “rap game” (risos), me entristece. Acredito que entristeça qualquer um que goste e respeite a arte e a cultura hip hop. Dentro de fatores que não me compete o julgamento, esse provavelmente deve ter sido uma das frustrações as quais Diogo partilhou nesse período de um ano, até o engajamento com seu álbum. Não é fácil se sentir ininteligível para o mundo, ainda mais quando seu meio de ganhar a vida é se comunicar com os outros através da arte. A suposta habilidade inata de escrever é colocada em xeque pela enxurrada de opiniões alheias à sua realidade ou — partindo de visões artísticas interpretativas incertas e pessoais (porque tudo tem que ser minuciosamente explicado para não causar dúvida) — intenção.

Não à toa, voltando para o livro de Jorge Amado, algumas personagens possuem coragem e fé suficientes para aguentar o julgamento de quem os vê ajudando os Capitães da areia. Padre José Pedro e o capoeirista Querido-de-Deus enxergam com olhos cheios de compaixão a realidade dura e vazia dos jovens vadios. A conexão dos dois com o grupo gera uma troca sincera entre as partes, numa espécie de reciprocidade suja e socialmente proibida. Além do narrador, já citado, que mantém a fé firme no propósito de expor e convencer o leitor de que existe algo nesses garotos que vai muito além do animalesco aparente nas notícias de jornal e nos crimes rotineiros. A firmeza de laços que não se corrompem, apesar do meio corrompido, é uma maneira de encontrar o caminho através da depressão.

Ter o respaldo e encorajamento sinceros de algo ou alguém é uma espécie de porto seguro, e nisso torna-se elegível a própria visão da religião, que salvaguarda valores morais e éticos que se mesclam nas suas raízes. Não à toa, Exú e Jesus — e tantos outros deuses de diferentes crenças — se assemelham em tantos aspectos, sendo o principal deles: ambos são capazes de sentir as dores do homem, meio-deuses e meio-humanos. E enfrentar a condição quase divina de poder mudar a realidade sozinho é se colocar à disposição do julgamento desse senso comum, implacável e frio, sem perder a fé.

A redenção dos meninos Capitães da areia acontece em meio a um processo doloroso, de perdas e tropeços para uma sociedade que os ignora e os corrompe, para depois poder deduzi-los do censo. O futuro espera a alguns em detrimento de outros. É a lei do mais forte. Ou a lei da sorte, o que dá na mesma. Nada diferente dos meninos das cidades de hoje em dia. É sorte existir alguém que deixe de lavar as mãos e escolha ser o narrador de uma história que busca sempre o olhar da compaixão e da fé. Senão com os outros, para consigo e basta. Isso não requer conhecimento aprofundado de ideologia política ou de filosofia/sociologia aplicados. É apenas humanidade em estado bruto. E é exatamente por isso que não consigo dissociar a trajetória solitária de Baco Exu do Blues, meio-homem e meio-deus em Esú, do universo de Jorge Amado.

A história, como é contada por Baco, emula o universo recém-descoberto do que somos capazes sozinhos e que fazem questão de impedir que sejamos todo santo dia. Nada mais justo que explorar as ruas sujas de Salvador e sentir o mundo cair sobre seus ombros sozinho, sem ninguém para aliviar o peso que é ser exatamente quem você quer ser e viver da maneira que lhe é cabível. Acredito que entendo a necessidade de lançar esse disco dessa maneira, sozinho e com tantas referências e símbolos, principalmente religiosos. É um simulacro. Não há como justificar sua existência por meio de outrem senão por ele mesmo. É um exercício de fé para com os Capitães da areia e seu universo, infelizmente, ainda vivo, cheio de traços, definições e preconceitos. É um exercício de personificação da arte de Jorge Amado na nossa época, uma época individual, superficial e frágil. É um exercício de fé para consigo, mostrando o quão necessário é carregar o mundo sobre os ombros se você deseja ser você, esse exercício divino. Esú é um exercício de fé para com o ouvinte.

Fé pra tudo, mas principalmente pra arte! Obrigado, M(estre)C(ervejeiro)!

P.S.: Acessem o Rede de Intrigas.

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