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Paralelos poéticos e literários – BK’ e August Strindberg

Acredito que todos aqui conheçam o Genius, certo? É natural que conheçam, todos queremos buscar as referências que os MC’s colocam nas letras, e acaba se tornando um espaço público para debate e troca de informação. Eu aproveitei o modelo do Genius, para tornar o texto mais dinâmico e rápido para vocês. Depois digam se aprovam ou não.

Como defensor da miscigenação da arte como forma de perpetuação da cultura, acredito que seja plausível comparar uma música a um livro, por exemplo. O que “impede” a comparação não é a complexidade da obra literária ante à música, no caso o rap, e sim a zona de conforto quase intransponível que esses dois mundos se colocam. Por um lado, os literatos se acham bons demais para descer às ruas e participar da formação de uma expressão artística marginal. Do outro lado, uma cultura que está crescendo vertiginosamente, mas que não explora novas formas de ver o mundo num contexto geral. Poucos MC’s criam e se inspiram em novas maneiras de passar o que querem com suas letras, caindo na mesmice e tornando uma cena bastante homogênea e nivelada por baixo liricamente.

Como meus textos giram em torno da obra poética e literária de determinados MC’s, resolvi trazer uma provocação para vocês: e se eu resenhasse um livro dentro de um rap, vocês sairiam da zona de conforto para buscar a referência? Isso não significa que ao ouvir certa música, você terá lido certo livro. Longe disso. Eu apenas destacarei, dentro de um rap, algumas impressões em comum entre ambos os registros. Daí para frente é a curiosidade de vocês que vai ditar.

Hoje eu trouxe o rap “Um dia de chuva qualquer”, do BK’, lançada no álbum “Castelos & Ruínas”, de 2016. Dentro dele eu enxerguei muitas semelhanças com o livro “Inferno”, do dramaturgo sueco August Strindberg, lançado em 1876. O que eu vi de tão parecido nos dois vem agora.

Antes de começar, um aviso: as partes destacadas em itálico foram as que sofreram análise em cima da obra de Strindberg. Aviso dado. Partiu!

[Ponte 1]
A gota que vai a cada segundo
A lágrima que cai a cada segundo
O sangue que circula
Escorre e cai a cada segundo

  • Equiparação de fenômenos: as lágrimas e o ‘sangue que circula, escorre e cai a cada segundo’ são tão naturais quanto à chuva. Introdução à uma realidade avessa que é tratada como comum, base do pensamento de Strindberg em “Inferno”.
  • Vale lembrar que Strindberg, além de gênio, era esquizofrênico. Ele interrompeu seu tratamento por acreditar que as drogas que o receitavam não faziam efeito algum. Esse livro foi escrito justamente nesse período em que ele não mais se medicava, portanto é um livro que flutua bastante e é escrito em fluxo de consciência. Isso se assemelha muito a montagem das letras do BK’, que parecem jorrar, especialmente nessa música, de pensamentos incautos, crus. As figuras de linguagem e as constantes mudanças de direção se assemelham muito à perturbação que Strindberg sentia.

[Verso 1]
Acerta o chão, e a velocidade se intensifica
O suicida se identifica

  • Strindberg, da mesma forma que BK’, identifica o suicídio como algo menor que o ser. Por mais que seja uma opção, não é algo aceitável. Veremos que dentro da postura de ambos, o tratamento do suicídio é menosprezado por uma dádiva, uma luz que os guia e que são capazes de ofertar a outros.

Na terra onde quem fala muito se complica
Na terra onde quem fala pouco, seu dente fica no lugar
Onde a tempestade não possa alcançar
Mas é necessário se molhar pra avançar
Mas é necessário avançar pra alcançar
Entre raios e trovões são corações como granizo

  • A desesperança acaba batendo forte ao perceber que modificações que nasçam das próprias pessoas ou da bondade inata do ser humano são cada vez mais raras. A ordem estabelecida pelo ‘poder paralelo de fato’ (mais abaixo) carrega a culpa do caos social, mas fica claro que a sociedade é indissociável desse processo, o que o leva à uma espécie de solidão e repulsa. O círculo entre controlador e controlado já está avançado demais para que sejam distinguidas as peças num julgamento de valor. Isso nos leva ao princípio da misantropia de Strindberg em “Inferno”. Mas, ainda assim, é necessário tentar avançar no meio desse caos todo, até “onde a tempestade não possa alcançar”.

O frio abaixo de zero graus, o mito, que após a tempestade vem o sol, fica mais difícil
Acreditar, quando olhamos para o céu e eu vejo tudo cinza nesse verde amarelo
E o poder paralelo, de fato o poder paralelo, vermes, germes invisíveis que batem o martelo
Alterando clima, alquimia, confundem a meteorologia

  • Existe um distanciamento emocional para com a sociedade, o que aumenta, consequentemente, o distanciamento físico. Como num processo de isolamento involuntário, a sociedade expulsa pessoas como BK’ e Strindberg ao mesmo tempo que ambos recusam a sociedade. Isso gera um estado de solidão latente também. BK’ atribui boa parte dessa sociedade fria à atuação do poder paralelo, do sistema que oprime, subjuga e ordena certos padrões de comportamento social que são avessos aos seus princípios de justiça, valores morais e tudo mais. Isso se passa com Strindberg, que reconhece a natureza da ordenação social, mas que vai mais fundo na crítica ao ser humano, repelindo todo e qualquer valor intrínseco à natureza humana. São estágios completamente diferentes de rejeição, mas se assemelham nas mazelas que apontam e encaram.

[Ponte 2]
Falsos profetas virão, muitos se ajoelharão e ouvirão, mas só os fortes verão, o inverno travestido de verão
O velho sábio disse que o sol brilha pra todos, é só perceber as chances dada pela vida
E não vacilar, nem se emocionar, porque desde que a gente nasce se inicia a contagem regressiva, será?

  • Uma das críticas mais ferrenhas de Strindberg a humanidade é a fabricação de ídolos, a necessidade de adoração do homem. Ambos atentam para o “olhar além do que os falsos profetas ofertam”. No caso, Strindberg aceita que sua loucura ou doença é, de fato, uma espécie de iluminação. Isso não é incomum e a própria letra de BK’ é um desafio ao que é considerado são/normal. A associação entre loucura que a sociedade os trata e a certeza da clareza que os ilumina é uma constante. Em Strindberg, isso nos faz crer que, afinal, ele não é tão louco assim. E isso fica cada vez mais forte ao percebermos o nível de crítica à natureza humana feita por Strindberg 140 anos antes dessa música ser criada. É como se a vida fosse datada antes mesmo de ser criação ou “desde que a gente nasce se inicia a contagem regressiva”. Será? Bizarro!

[Verso 2]
(Será, será) Tudo vem, tudo vai
Chuva vem chuva vai
Tudo bem, não tá mais
Eu também quero paz (sou mais um)

  • É engraçado como existe o enfrentamento, mas a guerra é única e exclusivamente pela busca da paz. O caos que transfigura as relações de Strindberg com seu próprio subconsciente tem esse intuito de pacificar o meio que vive e a si mesmo. A misantropia é, além de não concordância e aversão, uma válvula de alívio. A guerra e a dispersão do ódio, culturalmente, são propagados como aliviadores de tensão. Nos versos abaixo, BK’ transfigura a principal diferença entre a obra de Strindberg e a sua: BK’ ainda é capaz de reconhecer iguais e desfrutar desse convívio social.

Na correria, com meu bonde, minha família
Minha gangue, minha máfia, minha quadrilha (chame como quiser)
Ninguém vive de cena, aqui não tem ator, se não entendeu lamento, a pista não tem tradutor
Apesar dos mandado, dando uma de dublador, se os mano achar fica nublado, ou seja, o tempo fechou!

(Falsos profetas virão, muitos se ajoelharão e ouvirão, falsos profetas virão, mas só os fortes serão)

[Ponte 2]
Falsos profetas virão, muitos se ajoelharão e ouvirão, mas só os fortes verão, o inverno travestido de verão
O velho sábio disse que o sol brilha pra todos, é só perceber as chances dada pela vida
E não vacilar, nem se emocionar, porque desde que a gente nasce se inicia a contagem regressiva, será?

[Verso 3]

Fumo um cigarro, vejo a vida passar da janela
Fumo um cigarro, vejo a chuva cair da janela
Fumo um cigarro, vejo a vida chamar da janela
Apago o cigarro, vou pra rua cansei da janela

  • As alegorias usadas constantemente por BK’ com fenômenos naturais têm dupla função: tornar comum o comportamento das pessoas e explicar seu esclarecimento, o sentimento de impotência, a contemplação e a tentativa de tomar as rédeas da situação no meio do absurdo. O surrealismo das manifestações mais evidentes da loucura de Strindberg na sua escrita, proporcionam exatamente a mesma visão. Por diferentes caminhos e gerações, BK’ e Strindberg se assemelham na vivência de um inferno particular. Mas sempre lembrando que o inferno, talvez, possa ser a frieza social, a solidão, a incompreensão e o simples contemplar disso tudo.

Nos virando enquanto o astro rei não volta, fugindo da derrota
E o mundo vem pra entorpecer
Uma enchente de pensamentos, e a minha alma transborda

  • O link entre aspectos naturais, previsões para o futuro e a rotina do meio social em que vive, creditam à natureza um estado acima do bem e do mal, como o próprio destino ou o nosso subconsciente, que é o objeto de veneração de Strindberg em seu estado ”puro”. São forças as quais conhecemos, podemos delinear aspectos e sabemos a força que tem, mas elas reproduzem seus padrões por si só, como algo imbatível. Essa sensação do inexorável torna ambas as narrativas muito mais fortes do que parecem ser, estamos trabalhando com dois registros bastante poéticos e que flutuam em volta de um extremo de forma simples.

Se eu passar minha visão: quem que vai me entender?

Quem que vai me entender?
Quem que vai me entender?

  • Loucura social. Uma das temáticas mais frequentes de Strindberg e que atinge seu ápice em “Inferno”. Quem entenderia a ambos, BK’ e Strindberg, nesse conjunto de vícios que é a sociedade?

[Ponte 3] (3x)

Deixa chover, deixa molhar, lavar, regar, destruir, purificar

  • O desejo pela purificação através da destruição resume muito bem a misantropia sentida por Strindberg e, de certa forma, escrita por BK’. É uma face mais radical do pensamento. É como se o homem já não tivesse jeito. Um ser corrompido pelo sistema, pelos próprios valores adquiridos ou pela sua própria natureza. A questão é que só após uma grande “chuva”, a humanidade seria finalmente limpa e tentaria a reconstrução dentro de novos padrões, ou melhor, na ausência de padrões.

[Ponte 4]
O céu te ouve, escuta, as nuvens gritam, berram
é só um reflexo que rola da terra, espelho da terra
Se liga bandido, pow pow!

  • Enquanto Strindberg atribui seu estado psicológico a uma elevação esclarecedora, BK’ está face a face com um quadro social que só seria modificado quando o “astro rei” voltasse. Existe em ambos a composição de um destino pesado demais, como um fardo. Em Strindberg isso está intrinsecamente ligado ao seu subconsciente. Em BK’ está na construção da sociedade pelo poder paralelo, que ditou o destino das pessoas e apenas poucos, iluminados, conseguem enxergar o quão grave é a situação. São meios diferentes, mas com um fim muitíssimo semelhante em dada escala.

O tom fatalista das duas obras traz à tona reflexões importantes e, até onde se pode enxergar, atemporais. A questão é que nesse hiato de 140 anos, ambos os registros são capazes de dialogar livremente, como a arte precisa ser para respirar e evoluir. Minha provocação está feita. Strindberg não está longe do rap. Nada está longe do rap, basta vocês fazerem as associações.

Sugiram temas, formatos e mais o que desejarem. Toda sugestão é apreciada.

Acessem o Rede de Intrigas.

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