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Shawlin, Shaw, Cachorro Magro e transtornos de personalidade

Quem me conhece do Rede de Intrigas sabe a aversão que eu tenho por listas, prêmios, classificações e qualquer outro tipo de estrutura que promova a ordem. Mas num texto que promete ser longo, criar uma classificação pode me ajudar a explicar melhor as coisas. Portanto, tenham em mente que: eu não acredito que qualquer manifestação da arte possa ser colocada numa classificação e eu odeio me sabotar dessa forma, mas só elaborei isso para melhor entendimento de vocês, portanto não me peçam para comentar que MC se encaixa em qual “categoria”.

Tomei a liberdade de dividir os MC’s em três grupos literariamente distintos:

  1. MC vinculado a uma forma ou imagem;
  2. MC vinculado a um ideal;
  3. MC desvinculado da forma e do tempo (para mim, aqui residem os gênios. Portanto, qualquer texto meu será sobre um(a) MC/obra que eu admiro e reconheço como gênio/genial, ok?).

A definição de gênio vem atrelada a basicamente duas coisas hoje em dia: tempo e visibilidade. Normalmente, só reconhecemos a genialidade de alguém após a obra deste certo alguém atingir certo tempo no mainstream. Quão mais tempo visível, maior a chance de nós, como público, reconhecermos a genialidade dela. Isso é correto? Para determinados casos, talvez. A questão é que isso não abrange a grande maioria dos gênios. Kamau, Parteum, Nega Gizza e Don L, têm uma obra que é referência, mas não a visibilidade que merecem. Froid, FBC, BK’ e Diomedes Chinaski tem visibilidade, mas muitos alegarão que eles não possuem o tempo necessário, não se permitindo os chamarem de gênios. O público fica engessado quando trabalha dentro de estereótipos. Torna-se fácil modular conceitos e vender um gênio, um líder, um exemplo a ser seguido.

Mas, e quando o MC deseja fugir das imagens que, naquele tempo presente, o mercado coloca à disposição? Nesse texto temos um que fez isso três vezes, com três nomes diferentes e de três formas diferentes: Shawlin, Shaw e Cachorro Magro.

Todos sabemos que o Shaw é extremamente lírico, porém eu vou pegar um gancho diferente para falar sobre sua obra. Uma vez, quando perguntado o porquê de não escrever livros, Shaw respondeu que já havia escrito, é só ouvir seus discos com atenção. É aqui que nossa viagem começa, e ela passará pela poesia, pela prosa e pela filosofia. Partiu!

A minha interpretação da obra do Shaw (vou deixar Shaw como genérico, pois é mais fluído para o texto) é que existem três pessoas diferentes falando: Shawlin, que vai do 5º Andar até o ‘Ruas Vazias’; Shaw, que se consolida com o ‘Orquestra Simbólica’; e o Cachorro Magro, que é o alter ego atual e lançou o EP ‘O Inferno do Cachorro Magro – O EP do Vilão’ e mais alguns trabalhos. Como enxergo três personalidades diferentes, cada uma falando por si só, são heterônimos ou alter egos; e não pseudônimos.

Na literatura não é incomum o uso de heterônimos. Talvez, o caso mais oblíquo de todos, dentro da poesia, seja o de Fernando Pessoa, que adotou diversos alter egos durante a vida. O resultado disso são antologias de poetas completamente diferentes, com biografias diferentes, que foram escritas pela mesma mão e pensadas pelo mesmo cérebro. Porém, Fernando Pessoa não é referência aqui apenas pelo uso de heterônimos. Talvez seja mais interessante a contestação filosófica que podemos fazer a partir disso: quantas personalidades somos capazes de suportar e atribuir a nós mesmos? Em quantos “eus” somos capazes de nos desdobrar?

Vocês já ouviram falar em poema épico, por exemplo? Um poema épico é uma história sobre um herói, este representa uma organização de pessoas que desejam desfrutar de um bem comum, e passa por todos aqueles perrengues e aventuras numa realidade exageradamente distorcida (porque deve ser grandioso), até alcançar a glória. Leiam ‘A Divina Comédia’, ‘Odisséia’, ‘Ilíada’, ‘Eneida’, ‘O Paraíso Perdido’ e ‘Mensagem’, este último de Fernando Pessoa. Sim, Fernando Pessoa de novo. Ou Álvaro de Campos com alguma prosa poética ou crônica. Ou o médico Alberto Caieiro com toda a sua classe na hora de fazer poesias curtas. Fernando Pessoa, Alberto Caieiro e Álvaro de Campos saíram da mesma cabeça, mas são pessoas completamente distintas e cada um trabalha a sua poesia de forma diferente também.

Isso serve para mostrar que a multiplicidade de personalidades também se transfigura na variedade de registro. Isso é insano. Entendam, o cara possuía uma série de personalidades e cada personalidade dominava um estilo poético diferente. A abrangência disso é fenomenal e assombrosa.

Shaw faz isso com a sua poesia, mas, diferente de um poeta, um músico não poderia lançar muitas músicas de uma vez, cada uma com um heterônimo. Seria confuso. E o grande mérito de Shaw é justamente a transição de uma personalidade para outra. Funciona como se cada personalidade fosse uma fase da vida. Os livros escritos por Shaw são de uma construção poética incrível e de uma organização prosaica invejável. Mas o que a prosa tem a ver com isso?

Na prosa, quando um romance é escrito retratando as fases da vida de uma certa personagem e acompanhando seu crescimento, chamamos de “romance de formação”. Mesmo eu falando de três alter egos, há um encadeamento filosófico que os prende. Ele esconde o jogo, entendem? A poesia é o que está escrito, o registro. Mas, na verdade, tudo está organizado como se fosse um romance. Conseguir fazer com que sua obra flutue entre essas três personalidades sem deixar de ser reconhecido como o cérebro pensante daquilo, esse é o ponto.

É uma estrutura muito engenhosa e que teria tudo para dar errado. E o principal fator que poderia atrapalhar os planos de Shaw seria a visibilidade. O rap ainda engatinha quanto ao público entender algumas expressões poéticas e literárias, infelizmente. Qual o momento certo de abandonar Shawlin e se lançar como Shaw? E depois, como lançar o Cachorro Magro? Personalidades diferentes, construções poéticas diferentes, sonoridades diferentes e, naturalmente, públicos diferentes. Um autor peruano, Julio Ramón Ribeyro, escreveu a seguinte frase: “Os gênios são estes loucos, com uma qualidade a mais: a de encontrar a solução de um problema passando por cima das dificuldades intermediárias”. E para tentar entender como Shaw conseguiu construir sua obra sem cair no erro, fui até a filosofia. Se liguem.

Immanuel Kant não deve ser um nome estranho para vocês. Se for, pesquisem. O cara foi o pai do conceito da heteronomia. A heteronomia nada mais é do que a sujeição do indivíduo a forças externas, seja por uma ordenação social ou por um conjunto de normas. Então se você respeita as leis, você é um ser heterônomo; e se você respeita as convenções sociais, você também o é.

Você também pode não se curvar a ninguém, seguir sua própria moral e ditar as regras do jogo. Isso é a autonomia. Aqui você é dono de si.

E, por último, você pode desejar não arbitrar em nada, não ser dono de si, se desfazer de qualquer convenção social e apenas ver o que acontece. Sem qualquer tipo de espectro ético ou moral para te guiar. A isso chamamos de anomia.

Cada personalidade de Shaw expressa um desses estados que são a base de boa parte da obra de Kant. Vejamos.

Assim que começa a carreira, no 5º Andar e no Subsolo, Shawlin escreve como uma válvula de escape. Pensem em vocês adolescentes, conhecendo o mundo sujo como ele é e vendo uma coleção de amarras que precisa romper. Visualizar esse enredo é essencial para que não desconsideremos o discurso de uma personalidade que busca esclarecimento através da raiva que nutre, apesar de muito jovem. Finalmente, em 2007, com o ‘Ruas Vazias’, Shawlin, um jovem revoltado, porém heterônomo, consegue invocar suas impressões de mundo. A carga poética está toda ali, com registros sádicos (pela sua própria condição), autopunitivos (me ficou essa impressão em alguns sons) e inconformados.

De repente o jogo vira e aparece Shaw. Shaw é, de certa forma, uma evolução de Shawlin. O livro ‘Orquestra Simbólica’ mostra um cara dono de si, que observa o mundo e sua loucura de um estágio superior. Após muita luta ele conseguiu reconhecimento, escreveu o livro que queria e, de certa forma, conquistou sua autonomia. Então, a essência dessa obra é destacar uma nova alternativa para as pessoas. A consideração pelas coisas simples da vida, pela evolução através do amor e pelas coisas que devemos preservar e lutar, mas sempre com um posicionamento beligerante contra as pessoas e organizações que regem a sociedade. Existe um destaque evidente da sua liberdade e de como usufrui disso, saindo do sistema e ostentando o orgulho das coisas que foi capaz de fazer a partir dessa condição autônoma. Shaw salva vidas, é a essência do movimento hip hop. E ‘Orquestra Simbólica’ é, sem dúvidas, uma das maiores obras do rap nacional.

Shaw, autônomo e maduro, deu um passo fora de tudo o que prega: idealizou toda a liberdade e o amor que sentia numa pessoa. Quando essa relação acaba de forma trágica, seus conceitos se perdem. Mas aí entra a habilidade poética e, mesmo com todo o sucesso, Shaw sai de cena e aparece o Cachorro Magro. O heterônimo, fruto do rancor e sem nada a perder, desafia tudo o que consideramos correto. Sem senso de justiça, sem moral e sem ética. Cachorro Magro é um fenômeno da anomia. Nem Kant conseguiria personificar um conceito tão bem assim. Isso vem acompanhado, é claro, de um registro poético completamente diferente, tendendo ao infame, ao maldito, ao escárnio. O Cachorro Magro é um beatnik punk, altamente lisérgico e sem escrúpulos.

Desta forma, as três personalidades se desenvolvem dentro de uma cronologia. E essa evolução é passada através dos exageros nas fases da vida de um cara comum, como se colocássemos uma lupa em cada fase importante e tudo ficasse maior, mais intenso. Mas isso só é possível, lembrando, porque ele soube fazer as transições e trabalhar fora dos conceitos que “definem” um gênio, o tempo e a visibilidade. É uma construção hábil, que denota o domínio do artista sobre o que produz e a capacidade ímpar de alcançar diversos públicos, inclusive dentro do próprio rap.

A forma que Shaw se movimenta dentro da sua própria construção já deixa bastante evidente algumas coisas que ele não precisa escrever, é só uma questão de ouvir com atenção e assimilar. E, da mesma forma, alguns traços da sua escrita não se perdem de uma personalidade para outra, apenas são realçados. A ironia, por exemplo, é algo que permeia a escrita dele desde o começo. A diferença é em como ela é usada. Shawlin usa uma ironia mais tímida, porque ele se enquadra dentro de um conjunto de normas também, daí fica um pouco difícil ser objeto do seu próprio veneno; Shaw já usa a ironia de uma forma mais inteligente e sagaz por justamente ter conquistado seu espaço e ser dono de si, então ele não precisa ter medo de falar o que pensa; e o Cachorro Magro trabalha o extremo da ironia, porque nem o amor existe para ele mais. Então ele foge de qualquer entendimento sobre o “politicamente correto” e trata a sociedade como se fosse um grande teatro. Ele não tem nada a perder, porque a vida real é aquela em que vive e ele se satisfaz dentro desse mundo. É natural que ele extrapole limites.

A arte é uma constante busca. A busca do artista por fazer o seu melhor e a busca do ouvinte para assimilar toda a carga poética, se falando em rap. A primeira reação que eu tive ao ver o Cachorro Magro foi a de surpresa. Eu não entendi o porquê da mudança naquele momento. Bom, estou aqui hoje falando sobre o cara, né? Isso foi fruto de eu não ter usado a estranheza do momento para repelir o Cachorro Magro. O que foi construído por Shawlin e por Shaw não pode ser apagado pelo surgimento de outro alter ego, entendem? São traços, pensamentos e ideais que o artista materializou para dentro de uma expressão poética. Esse é mais um eu-lírico que ele externa.

Esse texto serve para mostrar que a criação, muitas das vezes, excede à pessoa que cria. A arte é perfeita, não o artista. Mas são esses excessos que fazem a arte girar, que permitem a inventividade. Assim, sempre devemos nos preocupar mais com o rap, do que com o MC. Se a cultura hip hop salva vidas, os MC’s foram ou estão querendo ser salvos tanto quanto nós.

No fim, as múltiplas personalidades de Shaw nos fazem pensar em como nós trabalhamos a nossa consciência diante do que o mundo nos oferta e, principalmente, diante da nossa própria visão de mundo. Somos projeções daquilo que pensamos, afinal. O grande prazer da literatura é mostrar em quantos podemos nos desdobrar sem medo de assumir os riscos. Shawlin, Shaw e Cachorro Magro são expoentes de uma personalidade que precisou colocar para fora certas nuances da vida, usou a poesia para esse fim e aperfeiçoou as expressões poéticas dentro do rap. Da mesma forma, precisamos aprender a reconhecer e a ouvir essas vozes dissonantes que habitam dentro de nós. Afinal, quanto mais somos capazes de nos ouvir, mais aptos estaremos a ouvir o próximo. E aprender a ouvir o próximo é essencial para o hip hop e, principalmente, para a vida. E nisso, tanto o rap quanto a literatura podem ajudar, e muito.

Como eu disse lá em cima, Shaw explorou novas formas e sempre esteve à frente do seu tempo, simplesmente por ter ignorado os padrões. Seus alter egos foram vozes que, antes de qualquer coisa, foram ouvidas por ele. É por isso que você deve prestar bastante atenção nas verdades que você não quer ouvir, mas que alguém vai falar. E torça bastante para que esse alguém venha de você mesmo, não importando quem seja.

P.S.: Todas as associações que eu fiz aqui foram frutos da minha interpretação, pesquisa e parco conhecimento. Apesar do texto longo, tentei apresenta-lo da forma mais simples possível para que vocês pudessem lê-lo, pesquisassem e abrissem esse espaço como um espaço de troca de ideias. Não me posiciono, de forma alguma, como alguma entidade superior. Apenas observei que dentro de todos os materiais que surgiram sobre rap nos últimos meses, existe muito pouca coisa que age sobre lirismo, poética e literatura. E sem isso, o rap seria incapaz de existir. As críticas sempre serão bem recebidas, assimiladas e avaliadas.

P.S.2: Visitem o rededeintrigas.wordpress.com

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