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Néctar Gang e a manutenção de uma identidade

Esse não é o primeiro texto de rap que cita Nietzsche, tampouco será o último, então para contextualizar nossa conversa vos digo que “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro” e complemento com “quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”. Citação famosa, encontrada no livro Para Além do Bem e do Mal.

A assimilação e a reprodução de um conceito exposto por qualquer via transformam qualquer manifestação cultural em identidade de um determinado grupo. Com o tempo, a reprodução recorrente de símbolos, maneirismos, ideias e sinais próprios perpetua uma cultura e se não a expande, mantêm-na viva. Contextualizando, ressignificando, subvertendo e descentralizando a frase que dá base ao texto, podemos definir cultura como uma espécie de monstro e identificação como uma forma de abismo. Indo além, a arte é um portal capaz de transformar expressões culturais de enfrentamento em monstros habitantes de abismos similares. Ou seja, o uso de outras expressões culturais dominantes que retroalimentam ou validam certa expressão cultural, no caso o rap — que joga luz e subverte a ordem abissal da estrutura —, pode ser transmutada, enganada ou seduzida e tornar-se tudo aquilo que diz combater.

Esse é um conceito que pode ajudar a perceber o funcionamento das coisas por outra via, uma maneira de olhar para o “rap game” com outros olhos. Talvez sirva de alerta, mas é difícil que eu alerte alguém em relação à legitimidade e importância da interferência que outras esferas de conhecimento acarretam como excesso ou supérfluo ao rap tendo escrito isso: Paralelos poéticos e literários – BK’ e August Strindberg.

Desde a mixtape de estreia, Seguimos na Sombra (2015), o grupo Néctar Gang viu sua identidade ser manifestada e refletida em fãs que, não obstante, têm acesso imersivo e incontrolado ao envoltório da arte como ela é hoje — é importante perceber como manifestações culturais se comportam no tempo presente, certo?

Com a criação do selo Pirâmide Perdida e as carreiras solo dos membros do grupo, a repercussão da identidade cultural do famigerado Bloco 7 é refletida para grupos cada vez maiores de seguidores. Passados três anos da mixtape de estreia, as reverberações da identidade cultural condensada nesse primeiro trabalho sólido do Néctar são óbvias. Porém, quando se trata da proliferação de novas identidades, é importante que sejam vistas as causas refletidas nos efeitos não isolados, para que o sentimento de “consequência de um bom trabalho” não seja esvaziado e fatores preponderantes para que a mixtape acontecesse “de fato” não permaneçam esquecidos.

A busca constante pela legitimação do rap enquanto “alta” (muitas aspas) cultura pode gerar certa “necessidade” de representações e alegorias capazes de sustentar esse ideal e a ocidentalização desse processo é inevitável por um motivo básico: fontes. As justificativas ao que começa a ser levantado estarão em outro texto, já em processo. Sendo assim, esse texto é uma forma de contradizer as primeiras linhas críticas do que foi estipulado como mote do texto; ou uma tentativa de fornecer ao leitor uma espécie de meta-texto, onde faço uso de recursos ocidentais completamente afastados do rap para elaborar conceitos que estejam inseridos dentro do movimento, o que pode tornar o texto uma peça filosófica por si só — o que não significa que seja uma boa peça, é claro. De qualquer forma, sigamos.

O esquecimento é a consagração do abismo. Se estivermos mexendo com arte, não necessariamente esse esquecimento está ligado ao sumiço de um artista da mídia, da cena ou como queiram chamar/definir “sucesso”. Esse abismo torna-se maior pela supressão das bases da cultura do movimento; quando partes da sua história — as que o público não se interessa em saber ou as que não são interessantes para a formação de um público — são reduzidas até se perderem completamente no imaginário do próprio monstro. A cultura, portanto, se reproduz a partir de uma lógica darwiniana em duas vias: a primeira condiz às bases culturais que se perpetuam; a segunda serve para o que é reproduzido como prática de quem consome.

Não é muito difícil encontrar casos de artistas que, mesmo monstruosos em audiência e aceitação do público, sofrem de depressão, crises de pânico e males semelhantes, ignorando completamente suas posições de destaque e voltando-se para o próprio abismo. Casos dentro do próprio Néctar mostram esse envolvimento dicotômico entre cultura e identificação, ou entre monstro e abismo.

Memórias do Subsolo, livro do russo Fiódor Dostoiévski, é o mergulho mais profundo possível nesse abismo que a arte proporciona. Enquanto o homem do subsolo emerge de um ambiente escuro, sem paredes, portas, limites ou definição, para praticar a negação de si mesmo — e do mundo que o cerca —, o sentimento de não pertencimento ou de deslocamento da realidade é cada vez mais latente e descentralizado. Sem bússola, caindo no abismo traçado pelo autor, fui fatalmente obrigado a concordar com um homem que nega a minha própria existência (e de tudo o que eu tomo como princípios e valores), estando quase dois séculos adiantado.

O recorrente uso da história como forma de “autonegação” proporciona a mesma sensação que a arte transmite ao trocar uma manifestação matricial da cultura pela réplica crescente de representações esvaziadas de sentido. Tudo fica parcialmente exibido em holofotes, até que se perde. A arte, como manifestação isolada, pode esvaziar uma cultura, a depender de como ela é trabalhada e desenvolvida. Portanto, a arte sozinha não é um contrapeso suficientemente grande para equilibrar a balança entre cultura e identificação; ou para, dentro da alegoria proposta, que não permita ao monstro identificar-se com os abismos que o cercam. A arte, por si só, não se sustenta. É um caminho, um portal.

Talvez seja por isso que antes de criar algo ficcional, insisto que todos deveriam aprender a contar a própria história da forma mais sincera possível.

Poucas coisas no mundo são tão céleres para o processo de criação, da realização prática de uma identidade, quanto ter reconhecido um lugar específico, um espaço onde ancorar, um marco de origem, um conjunto mandatário para justificar ao mundo a própria essência da cultura, uma história. Qualquer peça desenvolvida a partir de uma verdade tende a emancipar-se do abismo, por maior que seja o alcance.

O uso da arte poderia ter feito com que Dostoiévski nunca tivesse sido entregue ao abismo que o fez criar o “homem do subsolo”, que nega a tudo, inclusive o próprio nada. As reverberações de Memórias do Subsolo atravessam dois séculos sendo pilar para pensadores e movimentos inteiros que foram capazes de subverter e desafiar a realidade cingida numa ordenação à romanesca. Dostoiévski, ao negar a história, fez da própria literatura uma forma de subverter o que é factual e o que é profano aos ouvidos alheios.

É importante elevar a discussão para o que é histórico — e o que já deixou de ser. Deixar de relativizar o sucesso por uma sequência guiada por alcance, monetização e repercussão é imperativo num tempo em que há tanto sucesso medido pela liquidez de visualizações rápidas e ações passageiras.

As definições possíveis de sucesso são suplementares ao sentido que a palavra “sucesso” assume para o indivíduo. Essa é a razão pela qual trato o Néctar como unidade — ou monstro. Seguimos na Sombra é, basicamente, a história dos monstros que habitam dentro do Néctar — um monstro maior —, o pilar de um movimento que não se permite cair nos abismos que seus avanços são/serão capazes de criar. Em momentos de profundo arrebatamento por imagens, é importante ressaltar o peso que a história de cada um é capaz de dar à uma peça de arte sólida, que reacendeu o underground do Rio de Janeiro, e, consequentemente, consolidou a identidade de cada integrante do Néctar. Boa parte do sucesso longevo (para os padrões atuais) de cada um é, simplesmente, não terem negado suas histórias enquanto unidade.

Os homens que subverteram o subsolo. Todos já sabíamos o que aconteceria desde “Guerra nas Esquinas” [sic].

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